terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O Brasil depois daquele beijo



    O país é outro, depois da sexta-feira 31 de janeiro, quando um casal gay se beijou diante de milhões de pessoas sem que ninguém se escandalizasse?


    Juan Arias

    Nunca um beijo teve tanta repercussão nacional no Brasil como o do casal gay da novela Amor à Vida da TV Globo. O importante é que a repercussão foi notoriamente positiva, quase uma festa. Isso significa que a sociedade brasileira está amadurecendo sua aceitação dos diferentes? O Brasil é outro, depois da sexta-feira, 31 de janeiro de 2014 quando, às 23h08, dois homossexuais se beijaram diante de milhões de pessoas sem que ninguém se escandalizasse?
    Li na internet, críticas feitas na Argentina de pessoas que criticam o Brasil pela “absurda repercussão” gerada por um simples beijo gay. E criticam este país de ser um país “socialmente atrasado”.
    Equivocam-se esses nossos irmãos argentinos. Talvez o Brasil proceda mais lentamente que os outros em sua conquista das igualdades sociais, da defesa dos direitos humanos e da aceitação dos diferentes, mas tem uma qualidade: quando o faz, não volta atrás. Nos últimos 20 anos, apesar dos graves atrasos em alguns temas de direitos sociais, o Brasil avançou de maneira significativa.
    Hoje, a maioria (54%) dos brasileiros aceita o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e subiu de 40% para 54% o percentual dos que vêem com bons olhos que um casal de gays ou lésbicas adotem filhos, algo impensável há alguns anos.
    Costuma-se dizer que a sociedade brasileira é mais atrasada, mais conservadora e mais de direita que o Congresso. O beijo da TV Globo e a simpatia gerada em todo o país por aquela cena revela que não é sempre assim. Hoje por exemplo, está parada no Congresso uma lei que considera crime a homofobia. Os ilustres progressistas congressistas não são capazes da aprovar, apesar de ter tido em 2012 a cifra horrível de 338 assassinatos homofóbicos, 27% a mais que em 2011, como lembrou neste diário Talita Bedinelli em sua preciosa matéria. Tudo isso porque o grupo de deputados evangélicos impede sua aprovação. Um grupo que é mais conservador e intransigente que o público religioso, já que não há dúvida que entre os milhões de telespectadores que viram com simpatia o tabu do beijo gay cair, uma boa parte (talvez uma maioria) era de evangélicos. E não parece que  tenham se escandalizado. Nestes tempos de manifestações de rua, não teve nenhum pequeno grupo que tenha saído para protestar contra aquele beijo.
    No Brasil -como de modo geral nos países latino-americanos- a aceitação dos diferentes e o respeito em relação a que cada um use com liberdade seu próprio corpo e possa viver sem ser discriminado por sua sexualidade avançou nos últimos tempos.
    Todos os verdadeiramente democratas gostariam que esse processo fosse mais rápido, mas na realidade, hoje as coisas avançam em poucos anos mais que antes em séculos. Faz só 70 anos (não séculos) que, na hoje moderna e secularizada Espanha, os sacerdotes e bispos lançavam dos púlpitos das Igrejas maldições contra os católicos que frequentavam as praias e contra as mulheres que ousassem aparecer nelas em biquíni, uma peça que se dizia que era “objeto de pecado” e “inventada pelo demônio”.
    As autoridades franquistas, obedientes à Igreja, proibiram o uso do biquíni, o que provocou cenas grotescas como a dos policias civis vigiando as praias para levar à delegacia as mulheres “indecentes” que seguiam o usando a peça. Conta-se que em uma manhã, um guarda se encontrou com uma turista em uma praia do sul e lhe perguntou se não sabia que estava proibido estar ali com um traje de banho de “duas peças”, isto é, em biquíni. A turista- devia ser britânica por seu humor- respondeu-lhe: “Então, senhor guarda, diga-me qual das duas peças eu devo tirar”. E isso foi praticamente ontem.
    E os gays? Eles eram chamados depreciativamente de maricas, um apelativo que constituía a maior afronta, o maior insulto capaz de se fazer a um homem, que devia ser “quanto mais macho melhor”. Os diferentes eram mariquinhas e o ditador Franco odiava-os e os perseguia.
    Que as coisas mudaram é inegável; que o Brasil após o beijo gay será mais aberto às diferenças também é muito possível. Ninguém, é verdade, vai pensar que a partir de hoje se acabarão as agressões e assassinatos de homossexuais, mas é muito possível que esse número, que envergonhava a esta sociedade, de 338 assassinatos homofóbicos possa diminuir a partir de agora. Se apenas um homossexual deixasse de ser assassinado, já valeria a pena aquele beijo da televisão.
    Os analistas sociais estão convencidos de que o avanço que o Brasil fez nestes anos na batalha a favor do respeito às diferenças se deveu em boa parte a uma sociedade mais consciente e aberta que, junto dos grandes meios de comunicação e das redes sociais, tem criticando duramente as tentativas das forças mais reacionárias contra os homossexuais.
    Alguns gays até choraram de alegria e emoção vendo cair aquele tabu na TV Globo. Entendo-os. Esses milhões de diferentes sofreram já demasiadas humilhações e até o papa Francisco teve que sair em sua defesa. Chegou a hora de que possam viver em paz como os demais cidadãos.
    O que seria positivo é que, já que a sociedade está se aproximando deles para compreendê-los e  defendê-los, que eles também fizessem um esforço para reconhecer. Existe, por exemplo, uma expressão usada pelos gays que talvez devesse desaparecer de seu dicionário já que, ao ter mudado a sociedade, isso poderia carecer de interesse. Refiro-me ao orgulho gay. É verdade que isso era uma provocação aos que se achavam superiores por não ser gays. Hoje, que começamos a nos aceitar todos como iguais, esses orgulhos deveriam desaparecer para estendermos juntos, gays e não gays, a mesma bandeira da liberdade para viver a própria sexualidade.
    Deveríamos nos sentir felizes e orgulhosos, todos, de ter avançado na aceitação dos que até ontem considerávamos diferentes de forma negativa. Sentir-se todos iguais respeitando nossas diferenças é a melhor conquista civilizatória. O Brasil está no caminho. E com um beijo. Na filosofia gnóstica, que esteve a ponto de se converter na primeira teologia do cristianismo, o beijo significava além de um símbolo de afeto sexual, a “transmissão de sabedoria”, algo que a Igreja não entendeu quando se escandalizou com os evangelhos gnósticos onde se lê que Jesús “beijava na boca” Maria Madalena. E isso faz mais de dois mil anos.
    EL PAÍS BRASIL