sábado, 10 de maio de 2014

Desigualdade nos EUA atinge maior nível em um século

WASHINGTON — Quando um calhamaço de 600 páginas intitulado "O capital no século XXI" tem lançamento antecipado no maior mercado editorial do mundo, se instala na lista de mais vendidos do principal diário nacional, esgota a edição e provoca debates fora da academia, deve ter algo errado. E, nos EUA, este é o caso. O sucesso estrondoso do livro do economista francês Thomas Piketty —no qual a concentração de riqueza é descrita como produto intrínseco ao capitalismo — é evidência de que ficou impossível ignorar a disparidade de renda entre ricos e pobres nos EUA, país que um dia traduziu o sonho da igualdade de oportunidades e de mobilidade social para todos. O alarme, ainda circunscrito a círculos progressistas, soa num momento grave: a desigualdade de renda atingiu o maior patamar em um século e cresce sem parar desde 1979.

Piketty, professor da Escola de Economia de Paris, é um dos organizadores do World Top Incomes Database, banco de dados que investiga a evolução da distribuição de renda em mais de 30 países. O trabalho começou pelos EUA em 2003. O parceiro de investigação do francês, o economista Emmanuel Saez, da Universidade de Berkeley, atualizou os números, e chegou à seguinte conclusão: "A fatia da renda apropriada pelos 10% mais ricos nos EUA em 2012 é igual a 50,4%, a mais elevada desde 1917, quando a série começa".

A concentração é maior na comparação entre os 99% na base e o 1% no topo da pirâmide, que fica com 22,5% — distinção que o movimento Ocupem Wall Street ressaltou em protestos. Segundo Saez, de 1993 a 2012, a renda média real dos 99% cresceu 0,34% anual, enquanto a do 1% subiu 3,3% ao ano, dez vezes mais. Com isso, se apropriou de dois terços da riqueza gerada.

Piketty, Saez e o jornalista Timothy Noah (autor do livro-sensação de 2012, "A grande divergência") atribuem a uma perversa combinação de eventos e políticas desde a década de 1950 a responsabilidade pelo avanço implacável da desigualdade, após mais de 30 anos de descompressão que produziu a grande classe média americana. E o ponto de partida, por incrível que pareça, é o mercado de trabalho.

MERCADO DE TRABALHO

O topo da pirâmide não é composto somente pelos rentistas — o pessoal que vive de dividendos, juros, terra e imóveis acumulados por gerações. Duas guerras mundiais e a Grande Depressão iniciada em 1929, que levaram a mudanças como forte taxação dos ricos, dilapidaram parte da elite, no conceito tradicional até o início do século XX. É a renda do trabalho — incluídos salários, opções de ações, sociedade em microempresas, participações no negócio dos empregadores e trabalho por conta própria — o principal componente da riqueza e de sua concentração nos EUA, nas últimas décadas.

— Quem mais ganha hoje não são os rentistas, cuja renda deriva da riqueza passada, mas os "ricos que trabalham", empregados superbem pagos ou novos empreendedores que ainda não acumularam fortunas comparáveis às do início do século XX. Nos últimos 30 anos, o mercado de trabalho tem criado muito mais desigualdade — diz Saez.

Mudanças tecnológicas e a exportação de empregos reduziram a oferta das típicas vagas da classe média americana: operários, profissionais de escritório e vendas, atividades laboratoriais. É o fenômeno da polarização entre postos de alta e baixa qualificação, entre o balcão do McDonald's e os CEOs do Vale do Silício.

À medida em que a transformação se consolidava, a quantidade de mão de obra com formação superior não acompanhou, sobretudo entre homens. Desde 1993, a queda de renda de trabalhadores com ensino médio chega a 16%. Quem não se achou na nova economia aceitou ocupações de baixa qualificação e remuneração, em setores como alimentação, limpeza e cuidados pessoais, cuja oferta foi a que mais se expandiu em 20 anos.

Houve mudanças na remuneração da elite do mercado de trabalho. Executivos de primeira linha ganhavam na década de 1950, em média, 20 vezes mais do que seus subordinados. Hoje, recebem mais de 200 vezes. A "diretoria" das empresas representa 43% dos integrantes do 0,01% mais ricos, a fatia que mais cresceu e mais se apropriou de riqueza nos EUA em 40 anos.

Não é difícil imaginar por que trabalhadores do Walmart há 18 meses realizam greves: o típico colaborador da varejista recebeu menos de US$ 25 mil em 2012, enquanto o ex-CEO Michael Duke embolsou US$ 23 milhões.

Timothy Noah lembra que os sindicatos perderam força desde a aprovação de leis trabalhistas em 1947 e a hostilidade às organizações inaugurada no governo Ronald Reagan. Em 1979, 21% da força de trabalho eram sindicalizados. Hoje, são 12% — considerando-se apenas o setor privado, o indicador cai para 7%. Trabalhadores sindicalizados têm salários entre 10% e 30% maiores e mais benefícios, como cobertura de saúde e de previdência, rara hoje nos EUA no setor privado.

Sem capacidade de barganha coletiva, argumenta Noah, os trabalhadores perderam benefícios — 80% das companhias ofereciam previdência aos empregados na virada dos anos 80, para só um terço atualmente. A produtividade cresceu 64,8% entre 1979 e 2012, mas os salários dos funcionários sem cargo de chefia subiram só 8,2%, revela o Instituto de Política Econômica.

"Quando pessoas comuns não têm nada a lucrar com o fruto de seu trabalho, mesmo quando há crescimento econômico, a única motivação que elas têm para entregar resultado é o medo de privação. Esta parece ser uma situação perigosa", escreveu Noah, em referência a possíveis tensões políticas e sociais. Para ele, acionistas de empresas vêm se apropriando "do que um dia pertenceu à classe média assalariada".
Outra contribuição à disparidade de renda é a política tributária. A era inaugurada por Reagan é marcada por queda de impostos e aumento de deduções e isenções que beneficiam os mais ricos. Isso inclui taxação de propriedade, de ganhos de capital e de compensações pagas a superexecutivos (bônus de performance e opções de ações). A tributação ficou mais regressiva.

Somando-se tudo pago ao governo, a alíquota efetiva do 0,01% no topo (renda anual superior a US$ 9,1 milhões) recuou de 59,3% em 1979 para 34,7% em 2004, segundo Saez e Piketty. A desregulamentação de Wall Street e a faceta financeira da economia completam o quadro que impulsionou a desigualdade. Esses fatores produziram magnatas no topo da pirâmide, que são 18% do 0,01% mais abastado.

Para especialistas, as causas da disparidade de renda indicam caminhos para corrigi-la, mas dependem de decisões difíceis em meio à polarização política dos EUA. Nem a elevação do salário mínimo, congelado há cinco anos, cria consenso.

A educação aparece com destaque no rol de iniciativas, tanto no acesso universal à pré-escola quanto em políticas que facilitem e barateiem o ingresso nas universidades. É recomendável um plano de treinamento de mão de obra, para casar oferta e demanda no mercado de trabalho.

Piketty, Saez e Noah advogam ampla reforma tributária, na qual quanto maior o rendimento, maior o recolhimento. A discussão passaria por mudanças na taxação da folha de pagamento, novas faixas de tributação e alíquotas no topo da pirâmide e revisão de deduções e isenções. O economista francês sugere alíquotas de 80% aos mais ricos (já foi de 90% nos EUA até os anos 1960 e era de 70% quando Reagan assumiu; hoje, está em 35%).

Sem ação contundente, corre-se o risco, eles concluem, de que a acumulação de capital no topo da pirâmide faça os EUA voltarem aos tempos em que só era rico quem nascia em berço de ouro e a desigualdade de renda era brutal — com consequências políticas, sociais e econômicas.

O GLOBO