sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Os comunistas e o mundo de ontem


Marcelo Carneiro da Cunha
De São Paulo
Pois o PCdoB caiu e continuou no poder, mesmo que no espaço limitado e relativamente inútil do Ministério do Esporte. Mas como o que acontece é feito pra gente pensar no que aconteceria, fiquei aqui pensando com meus botões e zíperes: e se não fosse o Esporte. Se o trabalho do PCdoB hoje não fosse apenas regular o salto em altura e em distância, o hipismo, o halterofilismo e o kung fu? Se por um desses acasos que o tempo não vê, do kung fu da política saísse o PCdoB governando o país? Ficção? Talvez, mas a deputada Manuela, a lindinha comunista, quer ser, e pode ser, prefeita da minha estimada Porto Alegre. E acho que o PCdoB no governo seria tão esquisito quanto o Partido Monarquista, se é que ele ainda existe, fiquei com preguiça de googlear.
Nós estamos saindo de uma era onde as coisas tinham um certo sabor e sentido criados na Guerra Fria, uma guerra que não era exatamente a nossa, mas na qual entramos de qualquer jeito. Naqueles tempos, chamar alguém de comunista era algo como hoje chamar alguém de ateu em uma igreja evangélica. Curiosamente, chamar alguém de capitalista não fazia muito sentido e não era exatamente ofensivo. O equivalente a chamar de comunista seria chamar de burguês, o que novamente era uma distorção de um termo feito para designar uma coisa, acabando por designar outra.
Comunista era alguém que estava ali para acabar com o mundo. Burguês era um cara que, pelo bem do próprio conforto, se apropriava dos bens de produção, de um SUV e uma babá vestida de branco no mesmo processo. Ambos eram personificações do mal no século 20, em embalagens distintas.
Eu estava em Berlim na época da queda do Muro e era óbvio que muita coisa iria mudar. Se o outro lado era o resultado do projeto comunista, e tinha dado naquilo, então como um partido comunista iria seguir se justificando diante de eleitores, dizendo a eles pra não dar bola para aquelas questões menores de insolvência e colapso? Iria sugerir que os eleitores olhassem para a Albânia, e como ela era legal? Foi mais ou menos o que o PCdoB fez, que eu lembre, mas também deu preguiça de googlear, porque isso aqui é uma coluna opinativa, e uma boa opinião tem que ter doses iguais de informação e achismo, ou vira relatório.
Um partido monarquista nos garante que o mundo organizado por reis era muito mais estável e tranquilo, um ótimo ambiente para quem não fosse escravo, com a vantagem de termos coroas, princesas e carruagens. Esse culto a um passado idílico é até bastante compreensível, embora não faça, de verdade, o menor sentido, porque a política tem que lidar com o presente e, quando possível, criar futuros viáveis, e não românticos ou condenados ao fracasso.
O comunismo foi uma consequência da era industrial e do enorme acúmulo de riqueza, definida pelo capital decorrente, que se seguiu. O comunismo é, em uma das suas partes, um desejo de propor uma nova forma de divisão dessa mufunfa toda. De outro lado, como movimento reformador, ele queria criar um novo homem, preferivelmente, que não fosse um lobo do homem. Um sujeito mais solidário e comprometido com a totalidade, e não com as suas partes.
O primeiro golpe veio com a Grande Guerra de 1914, quando o que era para ser o novo homem se comportou e muito como o velho homem, na hora em que aderiram às partes que se massacraram com um incrível e industrial entusiasmo. O golpe final veio em 89, quando o império soviético deu um suspiro e morreu.
Dali veio aquele Fukuyama nos dizer apressadinho que agora a democracia liberal tinha vencido e a história tinha chegado ao seu final. Chegou, mas em 2008, e nem um pouco como ele desejava. Quem ficou mais ou menos de pé ao final de todos esses rounds? A boa e velha social-democracia, o capitalismo remodelado para dar conta de vários dos apelos de venda do socialismo industrial. E nele vivemos todos, de um jeito ou de outro, menos a China, que é algo um tanto indescritível e dificilmente copiável, mesmo que alguém o desejasse, o que eu duvido.
O que aprendemos, ao final de tudo isso, caros leitores, é que o que importa não é tanto o modelo de produção, mas a democracia. É ela que se apresenta como a única maneira de darmos conta das demandas de uma sociedade contemporânea e, por definição, complexa e nada uniforme.
O comunismo não foi desenhado para dar conta disso, e umas das provas é o amor que sente por burocracias, os sistemas sem alma que se implantaram onde quer que ele tenha vencido, e que atormenta igualmente a todos, onde quer que ela mande, o que inclui Cuba, o SUS, a Infraero e os bondinhos de Santa Teresa.
A luta do século 21 vai ser pela preservação do planeta e por mais e melhor democracia e menos burocracia, caros leitores. Nessa luta vai se definir o futuro e a nossa sociedade nele. E nisso, tanto monarquistas, plutocratas, oligarcas, motoserristas, burocratas e comunistas têm muito, muito pouco a contribuir.
E por isso mesmo não entendo o espaço concedido a eles nesse governo, a não ser como reconhecimento de que para nós, o século 21 pode ter até começado, mas nem tanto assim, nem tão bem assim, nem tão compreendido assim, para sorte deles, azar de todos.
Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe", publicados pela editora Projeto.
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