sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Sob máscaras, engraxates de La Paz lutam contra a discriminação


Muitos dos cerca de 3.500 engraxates que trabalham nas ruas da capital da Bolívia, La Paz, usam capuzes espessos e bonés encobrindo seus olhos para esconder os rostos e evitar que sejam reconhecidos.


"Meu filho sempre me pergunta por que eu encubro o meu rosto. Eu digo a ele que é porque não quero que meus vizinhos me vejam, senão eles gritam me chamando de lustrabotas, lustrabotas (engraxate, em espanhol)", afirma Javier Mamani, 31 anos, que engraxa sapatos desde os 14.


Ele é parte do exército de engraxates que, todo dia, corre as ruas de La Paz atrás de sapatos empoeirados, para limpá-los a 30 centavos de dólar (R$ 0,55) o par.


É fim de semana, e um sol reluzente esquenta o rosto descoberto de Mamani enquanto ele fala. Mas ele e a maioria dos lustrabotas dizem que, quando trabalham, usam um capuz ou um boné para se proteger do preconceito.


EXÉRCITO DE FORMIGAS

No entanto, um pequeno grupo de engraxates começou a contra-atacar, editando seu próprio jornal, chamado "El Hormigón Armado". Literalmente, isto significa "concreto armado", mas o nome também é um jogo de palavras.

"Os engraxates são hormigas armadas, um exército de formigas", diz Alexis Camacho, um dos fundadores do jornal.

"A sua arma é este jornal, que é tanto um alicerce da nossa sociedade quanto o concreto armado", afirma.

A sede do jornal fica na Fundação Boliviana de Arte e Cultura, no alto de uma das colinas íngremes de La Paz.

A cada dois meses, 4.000 cópias são impressas e distribuídas aos lustrabotas para vendê-las a 60 centavos de dólar por unidade, dinheiro que eles pegam para si.

A renda ajuda os engraxates a suprir necessidades básicas, como obter comida e encontrar um lugar para dormir.

Alguns deles chegam a usar os fundos extras para assistir a aulas noturnas, para ganhar novos conhecimentos profissionais.

Mas eles recebem os jornais sob uma condição: todo sábado têm de participar de oficinas sobre direitos humanos e educação sexual.

"Nada na vida é de graça. Eu dou isso a eles, mas eles têm de me dar o seu tempo", diz Isabel Oroza, diretora da fundação.

Mas Oroza diz que a luta é constante para convencer os lustrabotas de seus direitos.

"Nós trouxemos até a presidente da Suprema Corte para falar com eles, mas eu ainda acho que não conseguimos mudar a sua maneira de pensar", afirma a diretora.

"Mas nós aproveitamos toda oportunidade para ensiná-los os três 'Rs': responsabilidade, respeito próprio e a noção de que respeito gera respeito".

MAU HÁBITO

Na verdade, os lustrabotas têm um quarto "R" para lidar: reputação.

Os engraxates de La Paz têm uma reputação de ser trombadinhas, alcoólatras e drogados, uma imagem reforçada pelo uso das máscaras.

Em uma manhã de sábado, um engraxate de 13 anos chamado Wilmer chegou à fundação claramente sob o efeito de alguma substância.

O seu comportamento era errático e suas roupas tinham um forte cheiro de cola industrial, que muitos lustrabotas inalam.

Muitas das crianças engraxates são órfãs, enquanto outras só parecem ser isso, por preferir enfrentar as ruas do que seus lares, onde sofrem abusos. Para esquecer, eles cheiram cola.

Isto ocorreu com Luis Sanchez, que perdeu os pais quando tinha 15 anos.
"Eu não sabia onde conseguir dinheiro. Alguns amigos me emprestaram a caixa de engraxate, então eu saí da escola e comecei a cheirar cola", afirma.

"Eu parei pouco a pouco, mas é difícil quando você tem um vício como esse. Quando você está 'viajando', nada mais interessa".

A fundação dá aos engraxates uma rede de apoio, e os integrantes mais antigos fazem o possível para guiar os mais jovens.

"Meu pai era um alcoólatra e batia em minha mãe. Minha vida não tinha sentido na época, e eu cheirei cola também. Mas vir aqui todo sábado me faz me sentir bem comigo mesmo", diz Mamani.

"Eu digo aos meninos que eles podem chegar a algum lugar. Eu quero que todos tenham sucesso, este é o objetivo", afirma.

PREOCUPADO

Além da fundação, os lustrabotas também estão dando passos largos. Eles formaram 12 sindicatos em toda La Paz.

Mamani é o vice-presidente do maior deles, que representa os engraxates da principal avenida comercial da capital, chamada de Prado.

Este ano trouxe outro passo importante quando o prefeito de La Paz, Luis Revilla, formalizou a profissão pela primeira vez.

Ele disse que a profissão era uma das bases da economia da cidade e um trabalho digno, defendendo algo que os lustrabotas como Mamani sempre argumentaram.

Apesar desses avanços, na hora de tirar uma fotografia, Mamani ainda reagiu instintivamente ao buscar a proteção de seu capuz e de seu boné.
"Minha sogra não sabe que sou engraxate', disse.

Os sinais são positivos, mas claramente levará muitos anos antes que os lustrabotas de La Paz sintam-se à vontade para baixar a guarda totalmente.

BBC BRASIL/FOLHA