quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Que futuro para a Europa?


Luiz Felipe Lampreia, professor da ESPM Rio, foi ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso - O Estado de S.Paulo
A União Europeia (UE) era, até poucos anos atrás, um verdadeiro paradigma de integração, coexistência na diversidade e determinação histórica de superar os terríveis conflitos que dilaceraram o continente por séculos. Hoje é vista como um navio à deriva, lutando para não naufragar. Será bem assim?
Sob a batuta de grandes líderes, especialmente Jacques Delors, a UE teve inicialmente um modelo mais flexível criado no Tratado de Roma, que começou a vigorar em 1.º de janeiro de 1958 - o marco zero -, para o mercado único, do Tratado de Maastricht, de 1992. Nele se previa a total liberdade de circulação, entre os Estados-membros, de mercadorias, capitais, serviços e mesmo pessoas. Foi um enorme sucesso, no qual nos miramos ambiciosamente à época para criar o Mercosul. Houve, porém, uma lacuna grave, embora insuperável politicamente: faltou a obrigação de respeitar metas fiscais, ainda que os principais objetivos macroeconômicos tenham sido fixados. Os países europeus comprometeram-se a observar metas de déficit público, dívida, inflação e variação cambial, mas não abdicaram de manejar seus orçamentos nacionais. Mesmo que tivessem cumprido as metas de Maastricht - o que não ocorreu caso na maioria dos casos -, seria querer muito que os dirigentes políticos da Europa renunciassem ao poder imenso que consiste em arrecadar tributos e dispor do seu emprego segundo suas próprias agendas.
Mas aí estava o ovo da serpente que geraria a crise em que a União se acha atolada hoje. Uma péssima gestão fiscal levou à beira da ruína países tão diversos quanto Itália, Grécia, Espanha ou Bélgica, Grã-Bretanha e Portugal. A luta será longa e penosa para reequilibrar as economias mais fragilizadas da Europa. No momento a UE está começando a atravessar aquilo que vivemos penosamente nos anos 1980: uma década perdida.
O mais preocupante desse quadro sombrio está no fato de que a própria social-democracia está ameaçada pelo enfraquecimento dos Estados e pela dureza social dos remédios empregados para combater os excessos do passado de gastos e dívidas excessivas. Após firmar-se gradualmente em todo o século passado como a forma mais equilibrada de governo e a linha politicamente mais correta, essa concepção filosófica e politicamente correta enfrenta hoje um desafio quase tão profundo como o que sofreu na década de 1930 por parte dos variados regimes totalitários em todo o mundo.
Governantes muito respeitáveis, como Mariano Rajoy (Espanha), Mario Monti (Itália) e Passos Coelho (Portugal), que chegaram ao poder com uma plataforma de severa austeridade, correm o risco de ser derrotados na próxima curva da política porque impingiram grande sofrimento a seus povos sem poder apresentar mais do que a famosa afirmação de Winston Churchill: "Só vos posso oferecer sangue, suor, labuta e lágrimas". Como sabemos, não há saída econômica rápida ou fácil para o labirinto europeu.
Quais são as implicações geopolíticas destas realidades? Antes de mais nada, o peso político do bloco europeu está diminuído. A prova claríssima desse encolhimento está em que os Estados Unidos já não consideram a Europa um objeto prioritário de sua atenção estratégica, como a política de defesa recém-anunciada por Barack Obama confirmou. A China e a Ásia preenchem esse espaço. Obviamente, isso não se aplica por igual a todos os países da UE. A Alemanha mantém e aumenta sua força internacional à medida que seu papel se torna cada vez mais crucial na Europa. Se o euro for salvo à beira do abismo em que se encontra, o poder internacional alemão será ainda mais reforçado. Já a França, golpeada pelo rebaixamento de seu rating, tem menos legitimidade em sua afirmação de "grandeur", como a definia o general De Gaulle. O mercado não perdoa e atinge globalmente todos os que têm economias fragilizadas.
O pior cenário - que apenas se esboça no horizonte - é o crescimento da extrema direita e, ainda mais, sua chegada ao poder, abalando a natureza democrática do continente. A francesa Marine Le Pen é bem mais apresentável do que seu pai, Jean-Marie, o qual, ainda assim, chegou ao segundo turno contra Jacques Chirac, embora tenha perdido fragorosamente. Hoje, em quadro econômico muito mais grave do que oito anos atrás, ela se acha a dois pontos porcentuais do líder nas pesquisas para as eleições presidenciais francesas deste ano e tem, portanto, chances palpáveis de vencer. A profunda crise fomenta em toda a Europa ressentimentos com as decepções e agruras de todo tipo que a austeridade provoca nos indivíduos, causa sentimentos negativos contra os imigrantes, gera, enfim, um caldo de cultura de direita, que rapidamente se pode tornar antidemocrático e gera por vezes barbaridades como o assassinato de dezenas de pessoas por um fanático louco na Noruega.
Não é certamente minha atenção profetizar um desastre europeu, muito menos fazer paralelos ligeiros com o que ocorreu na década de 1930, com a ascensão generalizada do fascismo. Tenho sólida confiança na democracia europeia e a convicção de que ela será capaz de encontrar caminhos para sair de seu labirinto atual. Mas nada indica que as soluções virão rapidamente e de forma indolor.
No processo de recuperação em curso, é certo, porém, que a União Europeia vai perder terreno na escala do poder internacional, inclusive dentro da própria Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), na qual tem desempenhado apenas papéis auxiliares dos Estados Unidos, como na Líbia, no Afeganistão ou no Iraque. A contração dos orçamentos militares vai impedir um protagonismo internacional maior. Em outras palavras, por fim, a Europa vai seguramente encolher na cena internacional.
ESTADÃO