sábado, 4 de dezembro de 2010

Vida e morte do companheiro Monicelli

Vitor Hugo Soares
De Salvador (BA)

"A quem vocês irão chamar quando eu morrer?". Com esta inquietante pergunta disparada em seu particular estilo de humor, cético e cortante, em face de tudo ou quase todos ao seu redor - donos do poder, sindicalistas, jornalistas, religiosos, parentes, amigos... - o mestre da comédia italiana e mundial, Mario Monicelli, recebia repórteres que queriam dele uma reação sobre a morte de algum companheiro célebre na agremiação do cinema.
A pergunta fica agora dolorosamente no ar diante do suicídio do realizador de obras fundamentais do porte de "Os Companheiros", "O Incrível Exército de Brancaleone", "Parente é Serpente" - para ficar em apenas três exemplos de um diretor de vida e obra repletas de lições e aprendizados até o seu desfecho surpreendente - mas de uma espantosa coerência com tudo que ele disse e fez ao longo de seus 95 anos.
Para este jornalista baiano, a notícia da morte do cineasta, descoberta na leitura com olhos de blogueiro em um portal da web editado em Lisboa (TSF), foi o fato mais triste, impactante e transcendente da semana. Mesmo quando comparado ao que se viu e se vê nestes dias de "Tropa de Elite", em terceira dimensão, na maravilhosa cidade do Rio de Janeiro. Principalmente durante os feitos da Vila Cruzeiro e posterior ocupação do Morro do Alemão, que abrem um novo ciclo de ação e de debates sobre o combate à bandidagem do crime organizado no Brasil.
Um show de mídia, propaganda do medo e lobbies políticos e governamentais, transmitido ao vivo por nossas principais redes de televisão. Por estranha ironia, não faltam nem mesmo narrativas chocantes de deslavados desvios funcionais e corrupção de agentes civis e militares durantes as ações.
As denúncias que se multiplicam, partem de pacíficos trabalhadores que moram na Vila Cruzeiro e no Alemão e seus familiares, espantados alguns, amedrontados outros, desapontados outros tantos, diante da dúvida sobre quem são os verdadeiros heróis e os bandidos dessa história. Casos constrangedores transmitidos em horário nobre da TV.
Alguns já admitidos ou reconhecidos por autoridades de governo e de polícia, que cobram investigações e punições exemplares e urgentes - devidamente levadas também ao conhecimento público, sob pena de aumentar mais ainda o terreno pantanoso da impunidade, além de espalhar dúvidas e ceticismos sobre a ação de combate ao tráfico e ao crime organizado, iniciado como um dos mais espetaculares e esperançosos episódios não só para fluminenses e cariocas, nesta encruzilhada do tempo e do poder que o país atravessa.
Mas voltemos ao começo destas linhas, que o personagem principal aqui é Mario Monicelli, cuja vida foi encerrada no dramático estilo de seus filmes tragicômicos mais impactantes. A cena final de "Parente é Serpente", por exemplo - um de seus sucessos mais marcantes - que não revelo aqui para não ser um indiscreto contador de final de filmes a quem ainda não os assistiu.
Sou fã de carteirinha de Monicelli desde que vi "Os Companheiros" na tela do Cine Liceu, em Salvador, na época dos primeiros grandes embates estudantis, nas ruas da capital baiana, contra a ditadura. O sindicalismo também começava a ganhar corpo e força com as lutas de resistência do Sindipetro-BA, lideradas pelo falecido líder operário e depois deputado socialista na Constituinte, Mário Lima, reconhecidamente um dos mentores de Lula bem antes da explosão dos metalúrgicos no sindicato do ABC. Na época, o filme exibido quase clandestinamente nos sindicatos, diretórios estudantis e cineclubes, foi uma descoberta fundamental.
Com a morte do realizador, confesso ter sentido crescer outra vez a inquietante sensação de engolir em seco, depois de tantas gargalhadas e experiências informativas, culturais, históricas e sensoriais agradáveis vendo um filme de Monicelli. Algo semelhante à sensação provocada pela notícia da partida de Glauber Rocha, escutada em uma edição do Jornal Nacional e, em seguida, a explosão de choro convulsivo enquanto caminhava tonto pelas ruas do bairro da Barra, sem que os passantes entendessem o que se passava com aquele novo "maluco de rua" de Salvador.
O mestre do cinema italiano sofria muito com um tumor de próstata em fase terminal. Aos 95 anos, criativo e cético como sempre, optou por lançar-se do quinto andar do Hospital San Juan, de Roma. Com Monicelli, morre também a chamada comédia à italiana, nascida em meados dos anos 50. É tempo de orfandade.
Partiu assim o "Balzac italiano, autor de uma gigantesca comédia humana, através de dezenas de filmes, a maioria obras primas", como sintetizou o jornalista Curzio Maltezi, em Lá República. Vai Monicelli depois de terem partido antes cineastas fundamentais no gênero: Dino Risi, Luigi Comencini, Pietro Germi. E atores eternos da comédia e do drama: Alberto Sordi, Vittorio Gassman, Marcelo Mastroiani, Nino Manfredi e Ugo Tognazzi, entre tantos que se foram.
Sem o "eterno desafiante da censura", como destaca o "Corriere della Sera", no Obituário do magnífico realizador italiano, resta a pergunta crucial que o jornalista se faz antes de assinar estas linhas: "A quem iremos chamar agora, depois que o companheiro Mario Monicelli se foi?" Terra Magazine