domingo, 16 de janeiro de 2011

Outro lado da tragédia no Rio


Vitor Hugo Soares
De Salvador (BA)

O antigo e sempre novo compositor baiano ensina que a tristeza é senhora e desde que o samba é samba é assim. De Salvador, olhando para a tela da TV enquanto se desenrolam as cenas da maior catástrofe climática de que se tem lembrança na história do País, é praticamente impossível não associar os versos do samba pungente aos fatos, mazelas e personagens de um drama nacional tantas vezes anunciado e tantas vezes repetido, como acontece nestes primeiros dias de 2011 na região serrana do Rio de Janeiro, cujo grito de alerta (não escutado) partiu de São Paulo e Minas.
"Essa história é velha", proclamam as vozes críticas dos arautos da "objetividade jornalística", antes de remoer ataques à concessão de passaportes diplomáticos pelo Itamaraty aos filhos e netos do ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.
Essa é outra história antiga, que lembra tempos de mesquinharias e vinganças políticas e pessoais. Da época dos ditadores que dominavam quase a América Latina inteira e conduziam a feroz "Operação Condor". Então, o ex-presidente João Goulart e o ex-governador Leonel Brizola, vigiados o tempo inteiro e ameaçados de morte no exílio do Uruguai, tentavam em vão conseguir um passaporte que os permitisse - e a seus familiares - chegar a terras mais seguras, enquanto tanta "gente com dois passaportes" (a frase é de Brizola) - da imprensa, inclusive - voava livremente dentro e fora do Brasil.
Isso ninguém me contou, eu vi. Na época em que, repórter do Jornal do Brasil, também costumava voar de férias (com Carteira de Identidade apresentada antes do embarque) para sentir a pressão da chapa no continente. Mas, por enquanto, não quero perder o rumo destas linhas destinadas a falar sobre o drama atual nas serras fluminenses.
Sim, a tragédia das chuvas no Rio e no País também é velha e recorrente. No entanto, a cada tempo ela se apresenta mais intensa em sua dramaticidade exemplar, como na batida do clássico Bolero de Ravel. E a cada vez, há sempre algo novo e diferente para ver e aprender, basta abrir bem os olhos e tirar a cera dos ouvidos, como esta semana aconteceu comigo em um consultório médico da capital baiana.
No caso da zona serrana do Rio, os números apavorantes nesta sexta-feira em que escrevo, crescem sem parar. Já são mais de 530 mortos, dezenas de soterrados, milhares de desabrigados (vários na busca notícias desesperada de parentes mortos ou ainda soterrados), mas o rol de tristes fatos e consequências - sociais, políticas, econômicas, mas principalmente humanas - aumenta diariamente.
"Tudo demorando em ser tão ruim", como no samba triste de Caetano Veloso. Mas, aqui e ali, demonstrações de força, coragem, generosidade e profissionalismo que redimem e restauram a crença em uma nação, em uma gente e em um país. Quando tudo parece ruir e ser arrastado montanha abaixo pela enxurrada, eis as imagens com força humanística e competência jornalística capazes de restaurar fé, esperança e confiança quase inteiramente perdidas.
Falo, evidentemente, das imagens da reportagem que sugiro desde já como forte candidata a conquistar todos os prêmios de jornalismo do Brasil este ano - o Esso inclusive. Transmitidas pela primeira vez no Jornal da Globo, madrugada de quarta-feira, 12/1, as cenas correm e emocionam o mundo desde quinta-feira quando foram mostradas também no canal internacional de notícias CNN . Podem ser vistas nos blogs e no You Tube.
Mostram a operação de salvamento de dona Ilair de Souza, 52 anos, na localidade serrana de São José do Valo do Rio Preto (RJ). Reproduzidas inúmeras vezes e com todos os detalhes pelo canal fechado Globo News, na quinta-feira e ontem, a reportagem é simplesmente magnífica. Um desses momentos raros que unem bom jornalismo com demonstrações espontâneas de coragem, iniciativa, força, solidariedade, entrega e o melhor do caráter de um povo nas condições mais dramáticas e adversas. Tudo conduzido por gente simples, vizinhos, desconhecidos, heróis anônimos da comunidade fluminense.
Dado digno de nota: nas imagens fortes e comovedoras colhidas pelo olhar atento e competente do cinegrafista Rogério de Paula no comando de sua câmera, não aparece nem se percebe a presença de nenhum político, governante, representante de ONG, assessores, ou símbolos oficiais, nem mesmo da polícia, em um dos momentos mais emblemáticos e humanos dessa tragédia que abala o País.
Exemplo bom de ver no meio das patéticas e permanente representações teatrais de políticos e de governantes; da feiúra que restou de casas simples e ricas mansões destruídas; dos escombros que encobrem o rico cenário geográfico, cultural e artístico de belas localidades da época imperial; da bizarra festa de 20 mil pessoas saudando a chegada de Ronaldinho Gaúcho no campo do Flamengo, na Gávea, alheios ao horror e ao grito de dor que parte da região serrana, pela identificação do parente no necrotério improvisado ou na pilha de corpos congelados dentro do caminhão frigorífico.
Apesar de tudo, as imagens do salvamento de dona Ilair são reveladoras de que nem tudo está perdido. Há coragem e esperança entre os escombros da tragédia fluminense. A conferir. Terra Magazine