Claudio Leal
Do alto de um guindaste do Camarote do Reino, organizado pelo grupo Asa de Águia, o cantor da banda de pagode Psirico, Márcio Victor, protagonizou o momento mais polêmico do Carnaval de Salvador ao vociferar contra a discriminação racial.
Na madrugada de sábado (5), o músico teria sido ofendido por um empresário da cidade de Inhambupe (BA), com ataques à sua etnia ("preto favelado") e à sua sexualidade ("viado"). Segundo Márcio Victor, o agressor passava a mão na pele e fazia sinais negativos. "Fiquei puto", relata em entrevista a Terra Magazine. Na hora do incidente, ele pediu à polícia para dar voz de prisão ao frequentador do camarote, por crime de racismo. Um vídeo postado no YouTube expõe os brados do líder do Psirico:
- Polícia Militar! Esse cara aí merece ser preso! Ele mesmo... Ele... Ele aí... Você merece ser preso por discriminação à minha raça, ao meu povo! Tire da sua boca isso! Tire da sua boca isso! Você disse tudo que eu vi, seu idiota... O meu povo está cansado de sofrer! Se você tem dinheiro, meta seu dinheiro na sua bunda! (...) Não vou continuar enquanto não ver esse cara preso. Não joga nada, não vamos errar (...) Estou cansado de ser ofendido! Eu sou preto, pobre e me orgulho! (Veja aqui).
Detido pela Polícia Militar, o empresário foi liberado depois de desmentir as acusações de racismo. O cantor não registrou a queixa, mas estuda a abertura de um processo. O site "Bahia Notícias" divulgou a identidade do acusado: Luiz Antonio de Souza Santos. Um dos autores do hit "Liga da Justiça", cuja coreografia já foi usada por Neymar para comemorar um gol, Márcio Victor avalia seu protesto na avenida e analisa as tensões raciais e sociais do Carnaval da Bahia.
- O preconceito existe em todo lugar, mas não é tão forte ao nível de se criar uma coisa em cima do que aconteceu comigo. É uma luta do movimento negro, que enxerga mais isso. Eu transito bem nas duas classes, nos dois meios, tenho uma abertura em festas de gente da alta sociedade...
Apesar de admitir a predominância de brancos nos camarotes, o cantor afirma que os negros se divertem na festa e não encaram mal as funções de trabalho assumidas nesses espaços.
- O cara que é negão e vai dançar no camarote, ele dançando naquele camarote é apoteótico, porque é uma vitória pra ele. Não é como preconceito. Ele não vai com raiva, "estou aqui porque sou garçom", ele tá feliz de estar ali e porque está no meio daquelas pessoas. Chega vitorioso em casa. A gente lida bem com isso.
Márcio Victor encara a violência como um problema cultural, não apenas econômico. Na juventude, ele próprio circulava na folia para dar seus murros. Com paixão, o pagodeiro rebate as críticas às suas músicas, acusadas de incitar a "porrada" entre os foliões pipocas, como são chamados os que ficam às margens dos blocos de corda.
- Isso só vai se acabar quando tiver bloco de graça pro povo, quando a polícia for menos violenta no carnaval e a gente tiver um sistema de reeducação durante o ano todo, que já se comece agora um sistema de educação governamental para que as pessoas percam a coisa de ir pra rua brigar, bater, que é cultural. Eu lhe digo porque, quando era pequeno, era guri, ia pra rua também fazer isso (...) Isso sempre foi assim. Não sei se vai acabar, não.
Na cadeia de erros, sobraria apenas para os peixes miúdos.
- É um mangue. Quem vai preso é preto, pobre e fodido. O cara pega ali e é ele que é o alvo de toda merda feita no carnaval - critica Márcio Victor.
Terra Magazine - Você fez um discurso forte no carnaval de Salvador, acusando um frequentador do Camarote do Reino de racismo. Como foi? Você identificou o autor, mas não registrou a queixa?
Márcio Victor - Eu nem queria mais falar sobre isso, porque é um negócio complicado. Eu identifiquei porque todos os anos eu vou ao Camarote do Reino, acho aquilo massa, acho o melhor camarote que tem. A estrutura da passarela é fenomenal, é apoteótico pra mim...
Por cima do povão.
Pois é, acho lindo, a imagem é linda, o clima do camarote é muito bom. As pessoas do camarote são amigas, Durval (Lélys, da banda Asa de Águia) é meu irmão, parceiro. A hora em que eu estava tocando era duas ou três da manhã, um horário considerado de fim de festa, porque começa cedo e já está todo mundo "bebo", a violência tende a aumentar. É natural, não porque a gente tá indo pra um tipo de música incitando a violência, como ele falou (o acusado). Ele e mais algumas pessoas não estavam gostando de minha presença ali. Mas tirei de letra. Em alguns lugares, tem pessoas que não gostam mesmo daquele tipo de música que eu faço, mas ele ficou afrontando muito... Aí vi que ele passava a mão na pele, assim, e apontava pra mim, fazia sinais negativos... Isso, na minha cabeça, relacionado ao tipo de música, de público. Eu vi ele falando que eu estava levando a violência com meu bloco, com meu povo. E ele passando a mão na pele...
Numa conotação racial?
Com uma conotação racial. Uma coisa muito estranha. No carnaval, você já lida com toda essa situação de desigualdade... No camarote e na pipoca, todo mundo vê isso. O cara ficou mesmo fazendo questão de chamar a atenção. Ele levantava o dedo, levantava o copo, falava com amigos dele naquele momento. Eu falei: "Você quer ganhar seus 15 minutos de fama mesmo". Aí ele tirou a camisa, mostrou que tinha uma tatuagem estranha nas costas, eu acredito que alguma coisa ligada a exorcismo... Uma coisa sinistra... Eu pensei: "Velho, esse cara é do mal!" (risos). "Ele tá muito doido, bêbado, olhe o tamanho que isso pode tomar, preciso chamar a atenção disso...". Para que ele e outras pessoas que nem ele, que têm preconceito musical, social, racial, sexual, acabem com isso de uma vez por todas. Porque isso é uma questão de inteligência. As pessoas que têm mais condições são as que têm mais preconceitos. O pobre que tá ali, ele não tá nem aí pra que tenha camarote... Ele quer que o cara que tenha condições esteja no lugar dele e o cara que não tenha esteja no lugar dele. E as pessoas do Camarote do Reino são pessoas que nunca, jamais, fizeram uma coisa parecida, muito pelo contrário, eu sempre saio dali ovacionado pelo povo. As pessoas esperaram até aquele horário pra ouvir minha música... Eu fiquei muito triste.
E aí você mandou o cara "enfiar o dinheiro na bunda"?
É, porque na hora ele ficou fazendo sinal de que tinha dinheiro, fazendo sinal da cor, fazendo tipo "vaza, sai daqui, vá embora"... Ficou meio assim...
Tenso?
Estranho, velho, muito estranho. Eu falava: "Você tá falando da minha cor". Ele: "Não, não tô falando da cor, não", mas passava o dedo na pele. Pelo que eu soube, ele é de Inhambupe (BA). Era pobre, ficou rico, é dono de uma empresa de plástico lá em Inhambupe. Vi um comentário no YouTube sobre isso. Que ele era muito pobre e ficou metido a besta. Você sabe como são esses caras. Um cara muito estranho. Graças ao meu trabalho, tenho acesso a coisas, a uma certa quantia de dinheiro. A cada dia que passa, a minha intenção é, daqui a alguns anos, dividir metade do que eu tenho com as pessoas que não têm. Tenho vontade de doar metade das minhas coisas a uma instituição de caridade, para fazer com que os menos favorecidos tenham a oportunidade que eu tenho. No ano que vem, tenho vontade de sair sem corda, para dar mais oportunidade a quem não tem condições de estar atento. Pedi isso ao prefeito (de Salvador, João Henrique).
Voltando ao preconceito racial na Bahia. Você sente essas reações com frequência em Salvador, no seu trabalho?
Se eu sinto preconceito racial muito forte na Bahia? Não. O preconceito existe em todo lugar, mas não é tão forte ao nível de se criar uma coisa em cima do que aconteceu comigo. É uma luta do movimento negro, que enxerga mais isso. Eu transito bem nas duas classes, nos dois meios, tenho uma abertura em festas de gente da alta sociedade e faço a Lavagem do Rio Vermelho. Comemorei meu aniversário na Liberdade (bairro popular de Salvador), faço shows em cidades em que a população é pequena. As pessoas vêm lidando melhor com o preconceito. Agora, algumas pessoas ainda têm a resistência. A questão social é maior do que a racial, porém existe muito preconceito racial, sim. A gente não vê muito negros em cargos de poder...
Nem em camarotes, não? A presença predominante é de brancos e turistas.
De brancos e turistas, e negros estão ali divertindo... Mas é uma coisa que a gente não tira como preconceito. O cara que é negão e vai dançar no camarote, ele dançando naquele camarote é apoteótico, porque é uma vitória pra ele. Não é como preconceito. Ele não vai com raiva, "estou aqui porque sou garçom", ele tá feliz de estar ali e porque está no meio daquelas pessoas. Chega vitorioso em casa. A gente lida bem com isso. Já vi uma cena... Por isso fiz a música "Cole na corda". Já vi uma cena de um cara de um bloco, desses aí da alta sociedade, jogar o resto de uma cerveja na cara de um cordeiro. O cordeiro se abaixou, pegou a lata, bebeu do resto que o cara jogou nele, e depois ele foi com o cigarro e queimou o cara. Tem um vídeo. Tem filmado (um documentário), você vê a maneira como o cordeiro, o negro, o pobre, vai pro carnaval... A maneira como ele entra num ônibus, como vai pro circuito, como faz a segurança daquelas pessoas. E outra: a forma de a gente dançar é uma forma que as pessoas ainda entendem como violenta, mas é uma forma de dança, cultural... Os negões dançam assim.
Há uma discussão, principalmente na classe média, de se remodelar musicalmente o carnaval. Isso tem um lado de repressão ao tipo de música que o Psirico e outros grupos, como o Fantasmão, fazem? Você sente um preconceito cultural nisso aí?
Rapaz, do Psirico sinceramente não. O Psirico toca em blocos... O Fantasmão foi um grupo que trouxe um protesto muito forte, falando exatamente dessas coisas. O Psirico veio pedindo paz, a música veio falando de religião, pediu paz em 2004, cantou "Sambadinha do negão", levantamos a auto-estima da cor, falamos da auto-estima da mulher, viemos este ano falando de Gugu-gagá, Mulher Maravilha... São temas que a gente quis trazer pro Carnaval. Pode ter certeza que este ano o Psirico marcou mais do que nunca, porque todos os artistas vieram fantasiados, cantando temas leves, o Psirico mexeu. Hoje, o pagode predomina. O Harmonia (do Samba) é uma banda que transita muito bem nisso, a gente fala de coisas leves. Eu acho que isso é uma coisa de uma pessoa só ou poucas pessoas que se acham bestas. É um fato isolado demais.
Mas tem o lado da crítica musical também. Entre os chamados "bem pensantes", Caetano Veloso é um dos raros defensores do Psirico, dos grupos de pagode. Há um esnobismo da crítica musical?
Tem, tem. Pessoas da alta sociedade. Quer dizer, já teve. Hoje...
Tá mais light?
Depois que Caetano falou sobre o Psirico, depois que Ivete (Sangalo) gravou o DVD comigo, depois que muitos artistas vieram se juntar ao pagode, que Bell (Marques) foi no ensaio da gente, Daniela (Mercury), essas pessoas têm mudado muito. Hoje em dia, podemos dizer que o pagode é o ritmo mais procurado pelos turistas. A agenda de shows da gente está muito mais pro Sudeste do que até pra própria Salvador. Em Salvador ainda tem a música eletrônica, a música alternativa. Essa luta veio através da quebra de barreiras, de pudores. São empresários e pessoas que não acreditaram e que tentam fazer com que a música da gente seja vista como violenta, como música com o tom da discriminação. Mas não é. A gente quer, no pagode, falar dos problemas sociais, da falta de preocupação dos governantes com o povo, da falta de consolo que teve as pessoas que perderam as casas com as chuvas. Esse caso, nesse carnaval, foi muito isolado mesmo, aquele cara estava a fim de expor uma coisa negativa que existe dentro de poucas pessoas.
Anos atrás, Carlinhos Brown criticou o "apartheid escroto" no Carnaval de Salvador, falou com Gilberto Gil, mas depois recuou um pouco. Você não acha que isso precisa voltar a ser discutido, não há uma tensão no carnaval baiano em relação às cordas, aos camarotes?
Não sei a fundo. Sinceramente, só cuido, só fico muito ligado à música que eu tô fazendo. E o tipo de música que eu faço requer muita atenção ao mérito de pesquisa musical, não de entrar em méritos do tipo... Assim, eu não posso lhe dizer se a gente tem condições de mudar uma opinião que vem de peixe grande sobre algumas questões, entendeu? (ri) Por exemplo, o que eu acho? Tenho na minha cabeça várias coisas que deveriam mudar e se fazer, mas não queria falar sobre isso. Quero me direcionar ao lance da discriminação que aconteceu. Esse lance de Brown e Gil é uma coisa que talvez tenha tido um excesso da maneira que foi cobrada. E uma falta de preocupação da maneira como a gente vai lidar com isso daqui pra frente, com alguns problemas que a gente tem no carnaval.
O saldo do carnaval deste ano, ao nível de oportunidade de emprego, de desigualdade, foi uma coisa que foi muito igual há dois ou três anos, porque não houve tantas mudanças. Ainda se paga pra estar na arquibancada, ainda se paga para estar nos blocos. Isso só vai se acabar quando tiver bloco de graça pro povo, quando a polícia for menos violenta no carnaval e a gente tiver um sistema de reeducação durante o ano todo, que já se comece agora um sistema de educação governamental para que as pessoas percam a coisa de ir pra rua brigar, bater, que é cultural. Eu lhe digo porque, quando era pequeno, era guri, ia pra rua também fazer isso. Muita gente sabe que vai atrás do Chiclete (com Banana) pra ir na bagunça, na corda, que é gostoso...
Como diz a música de Gil, "na base da vã valentia".
Pois é. Isso sempre foi assim. Não sei se vai acabar, não. É só ter uma lei que puna a pessoa que bate no rosto da outra...
Mas já tem, não?
Mas o policial faz isso, entendeu? E ele não vai preso. O deputado faz isso. E ele não vai preso. É um mangue. Quem vai preso é preto, pobre e fodido. O cara pega ali e é ele que é o alvo de toda merda feita no carnaval. Não é isso. Tem a posição dos camarotes, tem o problema que veio das barracas que foram derrubadas antes do carnaval, a falta de emprego na cidade. É uma série de coisas.
É um problema da sociedade que precede o carnaval, é isso que você quer dizer?
É isso. E que assim dessa forma vai continuar tendo violência, preconceito, desigualdade e tudo. Naquele momento, eu falei daquela forma, uma coisa que não é normal minha, porque fiquei muito chateado. Mas vou conversar com minha família, meu empresário, pra ver se a gente vai levar isso adiante ou não.
Você ainda estuda se vai processar ou não a pessoa?
É.
Você acha importante a postura que teve?
Acho importante a postura, acho que fui preciso nas palavras, mesmo que, na hora da raiva, falei sem concordância verbal algumas coisas, porque fiquei puto (risos). Mas achei preciso e tem que ser dessa forma que a gente tem que agir com quem tem preconceito sobre qualquer coisa. A gente deve denunciar, deve dar voz de prisão. Eu me excedi porque sabia do meu direito, não porque era artista, não porque estava no trio. Eu sabia que o ato dele naquele momento estava ofendendo muitas pessoas. Tendo aquela postura, acho que contribuí para que em outros anos não venham fazer com mais ninguém. Não sei se vou levar adiante, se vou processar.
Você tem o nome dele?
O nome eu não tenho... Não sei. Acho que no YouTube tem... Coitado! Neguinho tá indo... Ele vai pagar um preço caro, ele não tem noção mesmo, acho que estava muito doido o cara... Ele não tem noção da merda que ele fez. Mas foi preciso eu acordá-lo. O negro tem que ter mesmo essa postura. Quando se sentir ofendido, o brasileiro tem que falar, expor sua opinião.
Há também preconceito contra os gays no Carnaval?
Tem preconceito contra gay o ano todo. No carnaval, eu saio vestido de "muquiranas" (bloco de travestidos), vou ali de boa. Tem muitos policiais da Bahia que não tão nem aí pra quem é gay... "O cara é gay? Beleza, tudo certo". Agora, tem umas pessoas da Bahia e de fora que têm preconceito. Vêm pra aqui e se misturam. O baiano não liga pra essas opções. Aqui na Bahia, a gente vive bem com isso. Essas pessoas que têm preconceito, e são da Bahia, têm a natureza podre, sabe? Não é porque a Bahia tem preconceito, é porque a natureza da pessoa é dessa forma. Não tem como acabar com isso, por mais lei que tenha. É só os gays, os negros, os desfavorecidos tomarem a atitude de denunciar, de levar esses casos adiante. No meu caso, vou pensar ainda se vou levar. Preciso conversar com minha família, meu empresário, para eu ter mais noção do que vou fazer. Na hora, eu fiquei puto. Falei: "É feio as pessoas olharem pra você porque você tem um jeito de gay e ficar discriminando porque você é gay". Aí ele pegou um copo e brindou com o amigo. O cara tava muito louco, velho, tinha tomado um "doce" (risos). Eu disse: "Velho, pelo amor de Deus se respeite, não discrimine um negro porque as pessoas poderiam lhe discriminar por você ser gay"...
Ele lhe chamou de viado?
Me xingou de tudo, me botou lá embaixo. Muito negativo. O que eu mais fiquei com medo é que o cara tem uma estrela de cinco pontas nas costas, que é a estrela do diabo, do demônio, sei lá. Esse cara vai fazer uma macumba pra me atrapalhar! Quero ele longe de mim! (risos) Terra Magazine