Francisco Viana
De São Paulo
Não tenho dúvidas de que no futuro Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República, não merecerá dos historiadores mais do que uma nota de pé de página. Todos os que ignoram o povo seguem a mesma trilha. Portanto, não estou fazendo um exercício metafísico de futurologia, mas registrando uma tendência facilmente constatável. Se havia dúvidas quanto a este destino inexorável, estas foram dissipadas pela forma com que Fernando Henrique tratou o chamado "povão" - palavra horrível e politicamente incorretíssima pois o que existe é o cidadão ou o povo, no sentido amplo - em artigo publicado pela revista Interesse Nacional.
Como se trata de uma nota de pé de página na história, não merece continuar os comentários. O que precisa ser discutido é outra coisa: há no Brasil uma tendência da direita tentar parecer esquerda ou progressista. Isto vem desde os tempos da ditadura quando múltiplos personagens, inclusive Antonio Carlos Magalhães, notório sustentáculo dos militares, se colocaram contra o regime e a favor da democratização. Na realidade, compreenderam mal o Brasil. Ou, o que é mais correto, tentaram dar uma nova aparência à velha essência conservadora. Autoritária, mesmo. Tentaram agir como os antigos pitagóricos. Ambicionavam um mundo ordenado por eles, um governo de eleitos, os ditos sábios ou mais preparados, distantes do povo, aquilo que vulgarmente se chama de povão.
Pensavam num governo hierarquizado. Com claro distanciamento aristocrático da sociedade, imaginavam que se sairiam muito bem. Tudo ficaria em seus lugares, como números e dali não sairiam. Estátuas sociais imóveis. A conformação (provisória) dessa hipótese veio de duas formas: a primeira, com a eleição de Collor, a segunda com a destituição deste da presidência. Parecia ir tudo muito bem, quando Lula se elegeu e mostrou, claramente, que o governo dos "aristóis", os aristocratas, tinha fôlego curto. E realmente teve. Prevaleceu uma alternativa muito mais real, muito mais em movimento, muito mais testada pela prática e não por uma visão de teoria. O ordenamento matemático do mundo não deu certo. Prevaleceu o processo de multiplicidade de ações e visões de mundo.
Por isso, paira a questão: que democracia iremos ter? Que democracia desejamos construir? Uma democracia que inclua amplas massas? Tudo indica que sim. A sociedade está em conflito com as empresas, com o Estado, com a visão tradicional da política. A sociedade quer participar de verdade. E, nesse sentido, abre espaços. Portanto, a sociedade diz não ao governo pitágorico - aqueles filósofos antigos que viam a matemática, isto é o ordenamento, como a ciência primeira e inquestionável - sempre trouxe prejuízos, e imensuráveis, ao país. A grande massa a ser incluída é consequência dessa autêntica catástrofe. Foi a forma trágica que a sociedade encontrou para contestar o cientificismo social da direita.
A exclusão da esquerda do processo político foi, por outro lado, uma dessas consequências. Dramática, coberta de sangue, um sangue que a direita não limpará jamais e que a nova direita tenta esquecer, fazer de conta que não existe ou não existiu. Muitos tucanos sempre se declararam de esquerda, mas quando a realidade impôs que tirassem ou mantivessem as máscaras, penderam para a direita, defendo uma democracia não participativa. Viraram as costas às mudanças, às reformas. O próprio tucano busca afirmar que derrotou Lula duas vezes. Na realidade, a questão é outra: por duas vezes venceu a ilusão, mercadejada amplamente, na disputa com a realidade. E a realidade é o que se afirma hoje: a participação da sociedade.
Claro, é uma participação ainda incipiente. Fosse diferente, não teríamos uma autêntica guerra contra os governos e as empresas privadas para fazer prevalecer direitos, para organizar as relações entre a infra-estrutura e a super-estrutura social (ou seja, o fazer novo, democrático, e uma concepção antiga do fazer). A realidade é que o cidadão - o dito povão, porque povão para os "aristóis" são todos, incluindo as classes médias - ainda se encontra bastante desprotegido e sem meios para ocupar o seu lugar.
A justiça é lenta, cara e de difícil acesso, por exemplo. Se discute e se muda quase nada a economia política, a infra-estrutura é precária e ainda vivemos muito em função do consumo. Em resumo, uma vida ainda medíocre - no sentido original do termo de mediana, de baixa qualidade. Mas, há liberdade e não há esse sentido vulgar do governo dos eleitos, como se a sociedade fosse uma matemática, com seus números, sua cientificidade organizacional e suas hierarquias, começando dos melhores, os mais sofisticados, para os mais simples. Como se existisse o UM, todo poderoso, a determinar regras, princípios, atitudes, enfim, o que fazer e o que não fazer.
Esse tipo de postura é pura nota de pé de página na história. Puro quase nada, sem nenhum demérito para as notas de pé de páginas que acrescentam informações, diferentemente das notas de pé de página política que traduzem a carência de virtù, ou seja, a incapacidade para mudar o destino. Portanto, é preciso olhar de muito perto o discurso tucano e ver, por exemplo, que a crítica à inflação é uma crítica meramente retórica. Não mobiliza a sociedade, mantém a sociedade distante dos acontecimentos, tal como imaginava Dom Pedro I. Não é uma atitude democrática, mas uma atitude aristocrática. Pitagórica na essência, sem novidade na história brasileira. Uma repetição de um Brasil imóvel, contra um Brasil que se recria e se revela móvel, determinado a se superar e criar uma grande democracia social.
Francisco Viana é jornalista, mestre em filosofia política pela PUC-SP, consultor de empresas e autor do livro Hermes, a divina arte da comunicação. É diretor da Consultoria Hermes Comunicação estratégica (e-mail: viana@hermescomunicacao.com.br) TERRA MAGAZINE