domingo, 18 de dezembro de 2011


Gaudêncio Torquato - O Estado de S.Paulo
Que imagem melhor caracteriza o Brasil em 2011: o voo da galinha, a corrida da lebre ou o andar da tartaruga? Ante as evidências de que o País não arremeteu de repente para despencar em seguida nem apressou o passo na estrada do crescimento, resta a certeza de que o retrato do quelônio é o melhor para significar o percurso do País no ano que finda.
Há, porém, quem não concorde com essa visão por achar que a tartaruga, mesmo arrastando vagarosamente os pés, consegue chegar ao destino e ganhar a disputa com a lebre, conforme se aprende na fábula de Esopo. Os usuários de lentes da economia argumentam que o Brasil derrapou na pista, considerando muito baixas as taxas de crescimento de 1,8% para o PIB industrial e de 2,8% para o PIB nacional. Outros olhares medem os passos por parâmetros diferentes, a começar pela junção de fatores externos às condições internas, o que significa considerar o refluxo da economia dos Estados Unidos e dos países europeus. Para estes já é motivo de comemoração o fato de o Brasil segurar a estabilidade econômica no bojo da crise que solapa as economias planetárias.
As percepções mudam de acordo com a ótica política. Situacionistas apreciam mostrar o País com um PIB de US$ 2,4 trilhões, prestes a superar o Reino Unido e se tornar a sexta maior economia mundial. Poderia ser melhor, retrucam os oposicionistas, se a primeira mulher a presidir o Brasil, com o prestígio de governante com a mais alta avaliação de todos os tempos em apenas um ano de administração, tivesse patrocinado um corajoso programa de reforma do Estado.
A par de argumentos das partes contrárias, reconhecendo até sua lógica, o fato é que 2011 será considerado um espaço de transição entre dois estilos de comando: um, marcado pelo perfil carismático de Luiz Inácio Lula da Silva, mandatário de feitio populista (motivado para o contato com as massas), e o atual, sob a batuta técnica de uma economista, mais propensa a afinar a orquestra estatal com o solfejo da eficiência e da eficácia. O palanque e o verbo solto dão lugar aos controles e reuniões densas. A qualidade da gestão e o monitoramento das ações ganham proeminência, conferindo racionalidade ao modus operandi da administração. A marca Rousseff ainda não foi impressa na esfera da percepção social porque o governo passou bom tempo tentando azeitar a máquina. A troca de sete ministros acabou abrindo flancos no costado administrativo, dando a impressão de que o governo procura um eixo.
A identidade racional da Presidência feminina, é razoável supor, substituirá a identidade emocional da era Lula. Tal transferência de signos fará bem ao País. Seus efeitos se farão sentir na consolidação da modernização institucional e política, eis que ganharão ênfase conceitos como produtividade, melhoria de processos, meritocracia, aperfeiçoamento de quadros, etc. Como se sabe, a tarefa de mudar a concepção da gestão não se efetiva em um ano. Ademais, o governante enfrenta uma montanha de desafios, a partir do fardo cultural e patrimonialista que tolhe os avanços da administração pública. Por conseguinte, a intermitente crise na frente política, que deflagra sistemas de pressão e contrapressão (nomeação e trocas de figuras nas estruturas), terá continuidade.
Esse é o dilema da presidente Dilma. Para firmar sua identidade ela precisa destravar o sistema político-partidário. A ferramenta para tanto é a reforma de costumes e práticas, meta que os governos protelam por saberem que o chamado presidencialismo de coalizão é um bicho de sete cabeças. Que sobrevive mesmo com a eliminação de algumas. Tem faltado ousadia aos nossos governantes para bancar o apoio a uma ampla reforma política. O que, aliás, só se poderia realizar no primeiro ano da administração, quando o governante ainda dispõe de enorme força. A presidente, por exemplo, tem compromisso de dar continuidade à agenda do antecessor, o que a obriga a manter o status quo da era lulista. E a preservar uma caderneta de endereços políticos que é responsável pelo maior rolo compressor do governismo dos últimos tempos. Portanto, o nó da gestão reside na composição política. Nessa vereda, o País caminhou pouco em 2011. E também não avançará muito em 2012, ano de eleições municipais, quando os currais políticos precisam de capim.
Na seara econômica, a relativa calmaria permitiu a continuidade da ação dos braços assistenciais do Estado, que acolhem mais de 12 milhões de famílias. Essa receita de harmonia social também se insere na planilha de créditos do governo. Já a área externa sofreu sensível mudança, resgatando o Itamaraty seu tradicional pragmatismo, que resulta na intensificação do diálogo com países centrais e atenuação da articulação com aliados inconvenientes. Em alguns setores o governo andou em círculos. A esfera educacional continuou com a imagem borrada por episódios de vazamento de provas do Enem. O sistema de saúde vive a crise crônica de precariedade da rede de atendimento público, pandemias constituem uma constante ameaça. No terreno da infraestrutura multiplicam-se as deficiências, como se pode constatar nas malhas dos transportes (viário, aeroviário, ferroviário e portuário). As carências no setor de saneamento básico são gigantescas. A violência castiga as paisagens urbana e rural, sob o registro da expansão de assassinatos e roubos.
Por tudo isso, há quem defenda outra imagem, não a da tartaruga, para caracterizar o Brasil em 2011. E sim a do caranguejo, que anda para a frente, para os lados e para trás. De olhos abertos, o País acende o ânimo e parece cuidar melhor de suas florestas. Intensifica a exploração de petróleo. Fura tumores da corrupção aqui e ali. Poderia ser menos improvisado e mais planejado. Ou fazer menos concessões ao passado.
Quanto à presidente, a sugestão é que preencha todo o espaço de sua identidade. Ela é a esperança de grandes mudanças.
Jornalista, é professor, titular da USP, consultor político de comunicação.
ESTADÃO