UM DIA AZIAGO: GUNTER GRASS E EDUARDO GALEANO
A
Alemanha e a América Latina, com o mundo inteiro, perderam dois corações
imensos, espíritos lúcidos de corpo e alma, insubstituíveis
Segunda-feira, 13 de abril de 2015: um dia aziago. Aziago: azarento, turvo, pesado, de mau agouro.
Eu
já me acordara de ressaca. Não, cara leitora ou caro leitor, no domingo
eu não exagerara no vinho ou na cerveja. A ressaca era por ter
acompanhado, mesmo de longe, as manifestações do 12 de abril. Uma
ressaca transferida. Como eu já previra em artigo anterior, estas
manifestações vão terminar conduzindo o Brasil a uma tremenda ressaca.
Ressaca vai haver, já está havendo, pelo refluxo que elas demonstraram,
caso a direita vença este terceiro turno, caso não vença. A ressaca
virá, em ambos os casos, da enganação que estas verdadeiras orgias do
despautério representam. A histeria sempre provoca ressaca, e há
histeria nas direitas e nas esquerdas também. Dizer que estas
manifestações são “contra a corrupção” é uma piada de mau gosto. Se
fossem, estariam levantando a bandeira da reforma política, não do
impeachment. Mas enfim, a Cesar o que é de Cesar, à direita o que é da
direita: a ressaca.
Mas depois desta frase para me acalmar, a
ressaca aumentou. É que li a notícia da morte, nesta manhã, do escritor
alemão Gunter Grass. Uma perda para a literatura mundial. Prêmio Nobel
em 1999, Gunter Grass foi de um brilho e de uma honestidade intelectual
ímpares. Nasceu em 1927, na então cidade aberta de Danzig, segundo
classificação da Liga das Nações, depois da Primeira Guerra Mundial.
Hoje é a Gdansk polonesa, cidade das memoráveis manifestações pela
democracia nos anos 80 que, infelizmente, levaram o país para a direita
onde está firmemente ancorado hoje. Saiu da ditadura comunista para o
ilusionismo capitalista. Enfim...
Grass aderiu, na juventude, às
Waffen-SS, braço militar da famigerada organização nazista, segundo ele
mesmo confessou mais tarde. Foi preso ao final da Guerra, mas solto um
ano depois. Renegou este mau passo, com a dignidade de confessá-lo. Mas a
confissão gerou-lhe polêmica e desafetos. Mais recentemente,
envolveu-se em outra polêmica, ao publicar um poema com críticas ao
governo de Israel pelo tratamento que dispensa aos palestinos. Foi
acusado de antissemitismo. Recusou a pecha com veemência, e com razão.
Seu
romance mais famoso é Die Blechtrommel (1956), publicado em português
como “O tambor”, na verdade “O tambor de lata”, sobre um menino que se
recusa a crescer, uma paródia cruel do tema de Peter Pan, porque não se
trata de permanecer no “mundo feliz da infância”. O menino atravessa a
guerra, sobrevivendo a todas as suas atrocidades. Foi adaptado para o
cinema em 1979, com direção de Volker Schlöndorff, filme que ganhou o
Oscar de melhor filme estrangeiro no ano seguinte e a Palma de Ouro em
Cannes.
Quando pensei que as más notícias e a ressaca tinham
acabado, vejo a nova de que morreu Eduardo Galeano, vítima de um câncer
com o qual ele já lutava há muitos anos. Entrevistei Galeano várias
vezes, nos Fóruns Sociais Mundiais e em outras circunstâncias, sempre na
TV Carta Maior. Lembrei-me de como ele misturava fina ironia, humor
agridoce, e conseguia o milagre de seu bem humorado fazendo cara de mau
humor.
Era um gentleman, além de um escritor brilhante. Minha
primeira aventura conjunta com ele foi ler “As veias abertas da América
Latina”, numa época em que a gente contrabandeava estes livros em
espanhol e proibidos ou mal vistos no mundo da ditadura brasileira.
Mencionei isto para ele numa entrevista no Fórum Social Mundial de 2005,
em Porto Alegre. Ele me olhou algo desconcertado, e comentou seu
desagrado por ficar prisioneiro de um único livro, ele que escrevera
tantos outros. Engoli em seco e engoli a lição. Tive o empenho de ir
atrás de seus outros livros, e descobri as maravilhas que ele escrevera
sobre futebol, sobre Montevidéu, sobre o Natal, e muitas e muitas outras
coisas que faziam parte de seu universo maravilhoso e maravilhado.
13
de abril de 2015: a Alemanha e a América Latina, com o mundo inteiro,
perderam dois corações imensos, espíritos lúcidos de corpo e alma,
insubstituíveis. Que a Terra nos seja leve, agora que ficamos sem eles.
Carta Maior