Pela primeira vez na história, pesquisadores conseguiram transformar uma população selvagem de insetos de modo a reduzir sua capacidade de transmitir doenças.
O feito aconteceu justamente com um dos maiores problemas de saúde pública do planeta: o mosquito transmissor da dengue.
A equipe de pesquisadores na Austrália, que contou com a participação de um cientista brasileiro, precisou de cem dias para substituir quase todos os mosquitos transmissores da doença em duas localidades por outros incapazes de carregar a dengue.
Em dois artigos na edição de hoje da revista científica "Nature", o grupo mostra como conseguiu bloquear a transmissão do vírus ao infectar os mosquitos com a wMel, uma variante da bactéria Wolbachia.
"Muitos estudos parariam por aí. Mas os pesquisadores deram o próximo e surpreendente passo de tentar a liberação de mosquitos infectados com a Wolbachia no campo, e o fizeram no seu próprio quintal", comentou, em artigo na mesma edição da revista, o pesquisador Jason L. Rasgon, da Universidade Johns Hopkins (EUA).
O primeiro artigo, que teve a participação de Luciano Andrade Moreira, do Centro de Pesquisas René Rachou, da Fiocruz de Minas, trata mais da caracterização da cepa da bactéria. Foi a nossa segunda investida em colocar a bactéria no mosquito, disse o cientista brasileiro à Folha.
As moscas-das-frutas têm a mesma cepa no mundo inteiro, diz Moreira, cuja parte no estudo era checar se a saliva do mosquito continha ou não o vírus da dengue, e se a bactéria conseguia bloquear a infecção. Mostramos que bloqueou, diz ele.
REVOADA
O estudo já durava vários anos e culminou com a liberação de quase 300 mil mosquitos contendo a cepa wMel em duas pequenas localidades de Queensland, nordeste da Austrália.
Yorkeys Knob, com apenas 614 casas, e Gordonvale, com 668 residências, receberam os novos moradores alados. Foram feitos cinco lançamentos de mosquitos a cada dez dias nesses lugarejos.
Os resultados foram espetaculares. Em Yorkeys Knob os mosquitos com a bactéria substituíram os locais em quase 100%. Em Gordonvale, passaram a ser mais de 80% da população do inseto.
Os mosquitos "vacinados" se reproduziram mais porque a Wolbachia usa um truque sujo para se espalhar. Machos infectados que cruzarem com fêmeas sem a bactéria geram filhotes que morrem ainda na fase embrionária.
Já as fêmeas com a Wolbachia se reproduzem sem problemas tanto com machos infectados quanto com os não infectados. Como a bactéria é transmitida da mãe para os filhotes, a combinação de fatores favorece os infectados.
Moreira ressalta que essa dinâmica foi levada em conta a cada passo dado pelos cientistas. "Houve uma criteriosa análise de risco, envolvendo revisores externos, que durou dois anos", conta.
O próximo passo é checar, na estação chuvosa, se o efeito da substituição de mosquitos permaneceu constante.
Estão sendo planejadas liberações semelhantes no Vietnã, na Tailândia e na Indonésia; o Brasil também pode ser incluído em um estudo futuro. "Estamos em negociações preliminares com o Ministério da Saúde", afirma o pesquisador brasileiro.
FOLHA