Sebastião Nery
Fazia frio naquela manhã de 8 de maio de 1945, no Seminário de
Amargosa, na Bahia. Às 8 horas o Padre Feliciano já nos dava sua aula de
italiano. Baixinho, compenetrado, vaidoso por sua pronúncia perfeita,
balançava as pernas curtas que não chegavam ao chão.
De repente, pelas janelas abertas, começamos a ouvir um rumor que ia
crescendo na praça em frente, com o povo pulando e cantando:
– “Hitler morreu, o urubu comeu, o couro é teu”!
O padre tentou impedir, mas corremos para a calçada e pulamos e
cantamos também. A guerra tinha acabado: 8 de maio de 45. Tinha 12 anos.
Escrevi a meu pai:
– “Aqui todos muito alegres pela paz, pelo fim desta terrível guerra.
Ontem, benção com Te Deum, missa cantada, parada e festas na rua. Hoje,
uma missa pelos soldados mortos”.
A guerra havia atingido a humanidade inteira.
STALINGRADO
Dez anos depois, eu estava comemorando o fim da guerra do outro lado
do mundo, em Stalingrado (hoje Volgogrado), a “cidade – martírio”: o
“Morro da Mamãe” foi 9 vezes tomado pelos alemães e 9 vezes retomado
pelos russos (o chão é um cascalho de cascas de balas), e onde estão
enterrados mais de 200 mil habitantes, mortos pelas tropas de Hitler.
Foi lá que se entregou prisioneiro o general alemão Von Paulus, com
todo o Exército de Hitler, marcando o começo do fim da guerra. Estive
dentro da casinha em que o general se apresentou preso. A gente sente
bem de perto a tragédia que os russos sofreram com bombas caindo sobre a
cidade 5 meses inteiros, dia e noite e 27 milhões de soldados mortos.
LENINGRADO
Stalingrado é sul. Lá em cima é Leningrado (hoje São Petersburgo),
outra “cidade martírio”. O rio Neva corta Leningrado de todos os lados.
São mil hectares de parques e jardins públicos, 101 ilhas, 65 canais, 48
pontes. E 3 milhões de habitantes. A cidade foi cercada, encurralada
durante 3 anos, de 1941 a 1944, pelos alemães e toda bombardeada.
Voltei lá agora. Leningrado ainda tem a cara do horror da guerra.
VARSÓVIA
Varsóvia também é uma “cidade martírio”. Numa madrugada branca, toda
pingada de neve, naquele já quase inverno de 1957, o velho motorista de
táxi, olhos azuis e cabelos fogueados, ia me contando coisas de sua
vida, entre o restaurante Krokodila e o hotel Bristol. De repente, a
praça imensa, quadrada, seca, vazia, absolutamente vazia, como um pedaço
de deserto caído sobre a cidade, com um discreto monumento negro ao
centro.
– O que é isso, esta praça estranha?
– Aqui foi o gueto de Varsóvia.
Aqui perdi pai, mãe, irmãos, filhos,
minha família inteira. Aqui vivíamos, nós, os judeus.
Em 1943, cansados
do cerco de Hitler, indignados com as perseguições, violências e
assassinatos diários dos nazistas, explodimos. Fizemos um levante
armado, um desesperado suicídio. Fomos arrasados pela superioridade
militar dos nazistas. Sobramos poucos, pouquíssimos. Fui um deles.
Arrastando seu francês cansado, o velho motorista de Varsóvia parou o
carro pequeno de quatro lugares, saltou, chegou junto ao monumento e
passou as gordas e avermelhadas mãos sobre a pedra negra, como se
alisasse o rosto inútil dos pais, irmãos e filhos mortos.
Tremi de frio e
angústia na madrugada branca de Varsóvia vendo aquele homem encardido
de desesperanças acarinhando a saudade de tudo que ele foi e a vida
dilacerou nas garras da violência, do radicalismo, do racismo.
HITLER
Cheguei ao hotel, comecei a escrever uma série de indignadas
reportagens sobre os crimes de Hitler contra os judeus: Treblinka, às
margens do rio Buz, onde foram cremados os heróis do gueto de Varsóvia.
Auschwitz, hoje museu da loucura dos homens, onde 3 milhões de judeus
(180 mil franceses, holandeses, russos) foram massacrados e queimados.
Os campos todos da ignomínia, da barbárie racista alemã visitei e
guardei a convicção de que, na dura luta do homem pela existência, uma
coisa sobretudo não se justifica; a agressão pelo preconceito, a
violência em nome da religião e a invasão dos países mais fracos para
vender armas.
GUERRA
Faz 70 anos o fim desse festival de horrores. E o mundo não consegue
festejar a paz. Por toda parte continuam pipocando guerras. Há sempre um
tarado fabricando armas e um pais vendendo. Drummond sabia.
– “Toda guerra é ganha pelos generais e perdida pelos soldados”.
Como Hitler, hoje os Estados Unidos inventam guerras para vender
armas. Eles, os grandes gigolôs da guerra, os maiores fabricantes de
armas do mundo, não resistiram a Hitler como os ingleses, os franceses.
Hoje invadem Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, África.
Lembrai-vos de Hitler!
Tribuna da Internet