Douglas Belchior – Imagine um amigo seu ou um
parente que fosse tratado como um animal. Imagine as pessoas que você
ama vivendo sem ter nenhum direito, podendo ser vendidos, trocados,
castigados, mutilados ou mesmo mortos sem que ninguém ou nenhuma
instituição pudesse intervir em seu favor.
Imagine você, seu pai, sua
mãe ou seu filho sendo tratados como coisa qualquer, como um porco, um
cavalo, ou um cachorro. Imagine sua filha sendo levada ou mesmo ao seu
lado, estuprada, todos os dias e depois, grávida à serventia do negócio
de seu dono.
Clóvis Moura (Moura, 1989, p.15-16), faz o relato sem personagens. Eu os incluí para pedir que imagine.
Você que já chorou diante das cenas que remetem o sofrimento de Jesus
Cristo na sexta feira da paixão; Você que fechou os olhos frente às
fortes imagens de Django Livre; Você que se emocionou com 12 anos de
escravidão, imagine.
Imagine – e saiba – que teu país e as riquezas que o conformam
existem em função de 4 séculos de escravidão. E de tudo que deste
período e deste sistema decorreu a partir de então.
Mas enfim, a escravidão acabou: 13 de maio, princesa Isabel e muita
festa! Festa e promessa de abonança, tal qual desrespeitosamente a amiga
Globo nos lembrou.
E no dia seguinte tudo seria diferente.
Desde que acompanho o movimento negro, aprendi que dia 14 de maio, o
dia seguinte ao fim da escravidão, foi o dia mais longo da história.
Aliás, dizem outros, é o dia que não terminou.
Depois de séculos de sequestros, escravidão e assassinatos, o que se
viu nos anos pós-abolição foi a formação e o desenvolvimento de um país
que negou e ainda nega à população negra condições mínimas de integração
e participação na riqueza.
Sem terra, sem empregos, sem educação, sem saúde, sem teto, sem
representação. Sequer a mais liberal das reformas, a agrária, fora
possível no país das capitanias hereditárias.
Vamos olhar para o campo e
observar as fileiras ou os acampamentos de Sem Terra, maioria negras e
negros. Vamos buscar na memória os rostos de quem conforma o pelotão que
estremece São Paulo na justa luta por moradia capitaneada pelos
movimentos de Sem-Teto nos dias de hoje: negras e negros! Bora olhar
para as filas dos hospitais, para os que esperam exames e tratamentos,
para os analfabetos ou para as crianças em idade escolar que estão fora
da escola.
Vamos olhar para a população carcerária e suas condições de
existência. Vamos olhar para as vítimas de violência policial, para os
números de desaparecimentos e homicídios. Vamos olhar para os
dependentes do bolsa-família ou da previdência social.
Vamos olhar para a
pobreza. De fato, ela atinge a todos. Mas a presença de negras e negros
nas condições narradas aqui, tem sido desproporcional e pouco se
alterou desde 1888.
O dia seguinte, a década seguinte, os 127 anos seguintes ao fim da
escravidão não foram suficientes para nos livrar de uma herança racista,
reafirmada cotidianamente pelos descendentes dos colonizadores que
sempre dirigiram o Brasil.
Estes mantém a posse do latifúndio, hoje
rebatizado agronegócio. Mantém o domínio dos grandes meios de
comunicação, são donos das grandes empresas, bancos, conglomerados
educacionais-empresariais, além de dirigir politicamente as maiores
Igrejas. Com isso garantem o poderio econômico a supremacia política e a
representação eleitoral de maneira a manter intocáveis seus interesses.
Nada diferente do que tem sido os últimos 127 anos. Ou os últimos 515?
E nesse dia seguinte ao 13 de maio, nesse dia depois do “fim da
escravidão”, resistimos! E em saraus, cursinhos comunitários, coletivos
negros, nas rodas de samba e candomblé, nos bondes funkeiros, no
hip-hop, na poesia, na literatura, nas artes, na internet, no movimento
negro, e aos pouquinhos, nas universidades, existimos.
E sendo assim, dotados de tamanha resiliência, imaginem a revolta!
Controvérsia