Apartheid da consciência
Michael Chabon The New York Review of Books
Vencedor do Prêmio Pulitzer escreve sobre o cenário em que ambienta o romance Telegraph Avenue: a Califórnia no início dos anos 2000, extremamente polarizada entre negros e brancos
Telegraph Avenue se passa em Oakland e Berkeley, mas nasceu em Los Angeles, em 3 de outubro de 1995, o dia em que o juiz Lance Ito abriu o veredicto de O. J. Simpson e o revelou para o mundo.
Se senti algo sobre o caso antes de o veredicto ser anunciado, foi só
que parecia bem óbvio que Simpson era culpado e que devia ficar preso
pelo resto da vida.
Quando ouvi as notícias do tribunal, fiquei chocado,
mas na verdade não me surpreendi. Na época eu era casado com uma
advogada (ainda sou casado com ela, mas hoje ela escreve livros).
Eu
sabia que a acusação, assim como a defesa, tinha um trabalho a fazer, e
que se o fazia mal, poderia ser derrotada. Então minha mulher me ligou
de um tribunal federal no centro de Los Angeles, onde trabalhava.
“Estamos olhando das janelas”, ela me disse. “As pessoas estão dançando
na rua”.
Isso me surpreendeu. Liguei a televisão e vi cenas de aparente júbilo
da comunidade negra de Los Angeles, e isso me pegou completamente
desprevenido.
Disse “aparente júbilo“ porque eu tinha noção de que a
única coisa que sabia sobre a reação dos negros ao veredicto era o que
eu podia ver na tela da minha televisão. Não havia pessoas negras na
minha quadra da Orange Drive, no Hancock Park. Na época eu tinha um
amigo negro. Não ia ligar para ele e saber se ele estava exultante.
Eu sabia o bastante sobre a televisão e o modo como ela retratava os
negros – o modo como retratava tudo – para não aceitar de cara a
conclusão de que todos os negros estavam encantados em ver O. J. se
safar. Mas era evidente que muitos negros estavam prontos, pelo menos, a
parecer encantados em frente às câmeras de tevê.
E isso me surpreendeu.
Surpreendeu muitos brancos. E quanto mais brancos como eu, nos dias
seguintes, expressaram a surpresa que sentiram em ver pessoas dançando
nas ruas porque um homem que obviamente tinha matado a esposa escapou da
justiça, mais eu ficava triste.
Essa tristeza tinha pouco a ver, Deus me perdoe, com as vítimas.
Não
era pelo erro da Justiça ou pelo modo como essa celebração pública
sugeria o grau em que os negros se sentiam alienadas do – e brutalizadas
pelo – sistema de justiça criminal e queriam, no mínimo, algum tipo de
recompensa bruta pela absolvição dos homens que tinham espancado Rodney
King três anos e meio antes.
Eu estava triste porque sabia que meu
espanto com a celebração pública, como o espanto de qualquer branco
espantado por aquelas circunstâncias, estava diretamente ligado à
ausência de negros na minha vida. Esse era o indicador piscando no meu
painel, avisando que minha ligação com as vidas e os sentimentos dos
negros tinha sido cortada.
No outono de 1969, quando eu tinha 6 anos de idade, minha família se
mudou para Columbia, no Maryland. Columbia era uma cidade nova. Uma
comunidade planejada, uma Cidade do Futuro construída do nada em meio ao
que tinha sido uma plantação de tabaco, a cerca de 50 quilômetros de
Washington.
Era manifestamente utópica em seus objetivos, transformadora
em suas ambições. Tinha grandes e bem cuidados trechos de espaço
público ao ar livre, escolas sem divisões por turma, transporte público
acessível, um único centro de culto ecumênico compartilhado por todas as
religiões, ruas batizadas em homenagem a obras de grandes poetas e
romancistas. E o mais assombroso de tudo, essa Cidade do Futuro era
integrada.
Até ali eu tinha conhecido muito poucos negros, e não tinha
consciência de raça exceto pela que extraía da televisão e pelo pouco
que entendia das conversas dos adultos sobre o tema, e nem tudo era
esclarecedor.
Martin Luther King Jr. assassinado; cidades em chamas; o
penteado estilo Montgolfier de Angela Davis; os desconcertantes
empresários brancos gananciosos de Curt Flood; os alertas cifrados de
minha avó quando ela me levava para passear na vizinhança de sua casa em
Washington; Sammy Davis Jr. cantando “Mr. Bojangles” no “The Flip
Wilson Show”.
Um dia no começo do meu primeiro outono em Columbia, entrando no
primeiro ano, me vi posto ao lado de um garoto negro. O nome dele era
Darius, e eu simplesmente sentei ali, maravilhado com ele, passando por
aquele momento clássico – na verdade banal – do Primeiro Contato do
menino branco.
Mas o que mais me impressionava eram as mãos dele. A pele
das costas das mãos era de um tom complexo que tinha elementos de
marrom e de um roxo brilhante. E quando Darius virou as mãos – quando
permitiu que eu as virasse – a pele das palmas era rosa como a das
palmas das minhas mãos.
Ao longo das bordas de cada mão e dentro de cada
pulso passava uma misteriosa fronteira entre o rosa e o marrom que
percorri vigilante com a ponta de um dedo. Parecia que havia uma
explicação profunda, a resposta para alguma pergunta que eu nem tinha
como começar a fazer, estava escondida nas palmas rosas das mãos dele e
no modo como elas contrastavam com o marrom das costas das mãos.
A ideia da construção da nova cidade de Columbia, como eu vim a
compreendê-la quando criança, era tornar a vida nos Estados Unidos
melhor. Um dos modos encontrados pelas pessoas que construíram Columbia
para fazer isso era dar às pessoas brancas e negras a chance de
participar da atividade radical de viver umas ao lado das outras,
estendendo sacos de dormir em grutas uns para os filhos dos outros,
nadando na água da piscina pública que tinha sido tingida em medidas
iguais pela urina desses mesmos meninos que se misturavam livremente uns
com os outros, tocando nas mãos um do outro, se deixando ser tocados.
Na rua em que cresci, havia mais famílias negras do que brancas.
Briguei, brinquei, jantei com, provoquei, admirei, discuti com, cobicei,
aprendi a dançar com, tive quedas por, vi tevê e finalmente tomei
cerveja com garotas e garotos negros desde que tinha seis anos até
quando saí de lá para entrar na faculdade.
O sucesso desse sonho, sonhado originalmente por James Rouse, pode
ser objeto de discussão, mas desde o dia em que revolvi o mistério da
palma da mão de Darius, mergulhei em uma intimidade com as pessoas
negras, com toda a falta de pudor e a coragem do coração visionário de
Rouse e do meu próprio pequeno coração.
Professores negros me ensinaram em salas onde eu sentava ao lado de
crianças negras de diversas origens – pobres e de classe média, vindas
do sul e do norte, do campo e do gueto, filhos de militares, de
advogados e de médicos negros – que a luta pelos direitos civis era uma
parte brilhante da história norte-americana, mais ou menos nos mesmos
moldes da Segunda Guerra Mundial.
Um conflito terrível havia consumido
esforços de pessoas que eu considerava como sendo meus heróis pessoais, e
os mocinhos tinham vencido. Como prova disso, eu só precisava olhar
meus melhores amigos, meus vizinhos, meus professores preferidos, vários
deles negros.
Frederick Douglass, Harriet Tubman, Dr. Charles Drew: na
Cidade do Futuro, em 1970, um menino judeu podia olhar para as vidas
dessas pessoas e se sentir ligado a elas, se sentir em dívida com essas
pessoas – de um modo muito real, ser um descendente dessas pessoas.
Porque, se havia um fato que chamava a atenção na história dos negros
que aprendi, saída dos lábios de professores negros, como um garoto que
cresceu em Columbia, Maryland, era esse: a história dos negros era
também a minha história.
A música negra era a minha música, a arte negra
era a minha arte, e as lutas e os sofrimentos dos heróis negros
ocorreram não só pelos outros afro-americanos, mas por mim também, pelo
bem de nós todos.
Quando deixei a Cidade do Futuro para entrar na faculdade em
Pittsburgh, comecei a jornada que um dia me levaria a aterrissar na
capital do eterno presente norte-americano: Los Angeles.
E naquela manhã
do veredicto de Simpson, descobri, para minha vergonha, para meu
absoluto espanto e para meu horror, que no caminho dessa jornada eu
havia, de algum modo, me tornado um racista.
Para ser um racista você
não precisa chegar ao extremo de estigmatizar, estereotipar ou de
discriminar pessoas de outras raças. Tudo que precisa fazer, como
descobri naquela manhã de outono em 1995, é se sentir completamente
desconectado dessas pessoas.
Tudo que você precisa fazer é olhar para
essas pessoas com uma espécie de surpresa quase científica, como eu
olhava para os afro-americanos que passavam nas ruas de Los Angeles, nos
dias após o veredicto de Simpson, e perceber que você vinha passando por
elas dessa maneira, por meses, por anos.
Eles estiveram aqui o tempo
todo, pensando o que pensam hoje, acreditando no que acreditam hoje, e
de algum modo você não percebeu.
Essa era a origem da tristeza que senti quando liguei a tevê e vi a
Los Angeles negra exultar: a súbita, amarga consciência de meu próprio
fracasso, de minha própria cegueira, do apartheid da consciência sob
cujas leis eu gradualmente passei a viver, da distância que separava o
homem em Los Angeles, em torno do qual 100 mil humanos podiam
subitamente se materializar, para o garoto em Columbia, o filho de
Tubman e Drew e Rosa Parks.
Uns dois anos se passaram, e minha mulher e eu nos mudamos para East
Bay, para uma casa de telhas marrons perto da divisa entre Berkeley e
Oakland. Pela primeira vez em anos me vi no centro de outro lugar que
podia ser uma utopia, vivendo partes importantes do dia a dia entre
pessoas negras.
Brokeland — o nome que eu dava para a costura, a junção,
a franja cheia de irregularidades ao longo da qual Berkeley e Oakland
se perseguem como dois gatos, ombro a ombro, flanco contra flanco, com
os rabos se cruzando. Uma terra de seguidores de Fourier tipo
faça-você-mesmo e de coletores urbanos de alimentos, praticantes
amadores de satori, plantadores de felicidade e de teóricos autodidatas e
de místicos cujas visões eram gravadas em suas peles com agulhas e
tinta.
Um coletivo de heremitas, cuja feroz, às vezes rabugenta conexão
com seu próprio desenvolvimento individual só era comparável ao desejo
que tinham de companhia, de um tipo de realização coletiva, em um
permanente ciclo de comunidade e separatismo que criou uma miríade de
monastérios, sinagogas, dojos e escolas de culinária.
Eu tinha a tendência de encontrar os outros eremitas desejosos de
convivência principalmente em um tipo de loja pequena e peculiar que
abundava em Brokeland. Lojas que se especializam em algum tipo de
mercadoria pela qual era fácil se tornar obsessivo – amplificadores
estéreos a válvula, digamos, ou suprimentos de vanguarda para tricô ou
milk-shakes preto e branco –, lugares com grandes balcões e com cadeiras
extras para puxar para conversar por uma hora com o proprietário ou com
seus companheiros de solidão.
De todas essas tavernas não alcoólicas,
desses clubes não oficiais para pessoas esquisitas e inusitadas, os mais
puros, acho, eram, e continuam sendo, as lojas de discos usados.
Berigan’s, dba Brown, Groove Yard, Dave’s, elas vão e vêm, mas sempre há
algumas por perto, apertadas e empoeiradas ou limpas e organizadas,
cujos donos e funcionários eram heróis e aficionados condenados a esse
destino.
Um dia, não muito tempo depois de me mudar para East Bay, entrei em
uma dessas tavernas, pouco antes da linha que separa Oakland de
Berkeley. Tinha um sujeito negro grande trabalhando no balcão e um
sujeito branco pequeno trazendo caixas de uma sala nos fundos.
Os
clientes da manhã tinham se organizado no balcão – velhos, novos,
negros, brancos e marrons.
Judeus e gentios, um dentista, um
desempregado – teorizando, opinando, tentando impressionar.
Passando
tempo juntos.
Eu não me deixava iludir achando que esses caras estavam todos unidos
numa perfeita irmandade.
Eles não tinham curado as cicatrizes raciais
do país nem inventado uma nação melhor.
Ninguém estava pedindo nem dando
perdão ou indenizações por causa da escravidão. Eles só estavam
conversando fiado, passando o tempo, falando sobre uma coisa que amavam:
vinis antigos. Em um pequeno lugar do imenso mundo, por uma breve hora.
Logo eles seguiriam seus caminhos diferentes, caminhando em suas vidas
descontínuas e unidas, por colinas e planícies, rumo a conjuntos
habitacionais e antigas casas no modelo Eichler.
Mas naquele momento,
pela primeira vez em anos, mexendo nas caixas, inalando o perfume pesado
deixado pelo tempo em LPs que estavam embolorando, eu estava onde havia
muito tempo queria estar.
Eu tinha encontrado um lugar onde pelo menos
um resquício do que eu tinha perdido, o sonho em que eu tinha
acreditado, a proximidade que havia conhecido em uma época, podia ser
encontrada. Eu estava em casa.
Não muito tempo depois, a loja fechou – era da natureza da Utopia
fechar — e nunca foi realmente substituída. E então, outra vez, como em
As Incríveis Aventuras de Kavalier e Clay, como na Associação Judaica de
Polícia, me vi obrigado a, e cheio de vontade de, recriar por meio da
ficção, contando uma história e fazendo uso da prosa, a utopia perdida
que nunca chegou realmente a acontecer, que nunca realmente conheci, que
nunca esqueci desde então e que tenho pedido, e desejado, por toda a
minha vida.
Tradução: Rogerio Waldrigues Galindo
Gazeta do Povo